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terça-feira, 7 de maio de 2013

FORMAÇÃO DO BRASIL: Celso Furtado

O Centro de Formação Milton Santos-Lorenzo Milani também discutirá a obra de Celso Furtado, importante economista brasileiro, teve grande influência nas políticas econômicas nacionais antes do golpe de 1964. Suas propostas de reforma social dialogaram amplamente com os movimentos sociais, sendo de oportuno destaque a problemática da reforma agrária.

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Artigo "Estado, movimentos sociais ereforma agrária: as duas fases do pensamento de Celso Furtado no pré-1964", de Julia Gomes e Souza


Estado, movimentos sociais e reforma agrária: as duas fases do pensamento de Celso Furtado no pré-1964

Julia Gomes e Souza

Introdução

Celso Furtado foi, durante a década de 50 e até o golpe militar de 1964, um intelectual de destaque no interior da burocracia estatal brasileira. Escolheu o aparelho de Estado como local privilegiado de sua atuação, onde adotou uma postura militante, buscando orientar as políticas estatais de acordo com sua visão de mundo. Para isso, travou um grande debate com muitos de seus contemporâneos, buscando deslegitimar as posições desses e demonstrar que a perspectiva por ele adotada era a única que se pautava por um método realmente “científico” de observação da realidade.

Mesmo ainda na CEPAL (Comissão Econômica Para a América Latina), ele se dedicou a elaboração dos diagnósticos sobre a economia latino-americana, em especial a brasileira e na proposição de políticas de Estado. A Comissão foi um dos principais órgãos de difusão de ideologia desenvolvimentista, fornecendo o seu arcabouço teórico. Para José Luís Fiori (1995), a CEPAL foi a primeira instituição a formular uma resposta teórica sistemática para o atraso brasileiro, associando-o ao contexto internacional. Defendeu a industrialização induzida pelo Estado como estratégia para o progresso. Para os seus membros, essa seria forma de diminuir a vulnerabilidade dos países periféricos e de obter uma inserção diferenciada na divisão internacional do trabalho. O maior representante brasileiro do pensamento cepalino foi Celso Furtado, que segundo Joseph Love (1998:360), foi “...o cientista brasileiro mais influente de todo o século”. Nesse sentido, “...a teorização da Cepal, e de Celso Furtado, transformou-se em ideologia no sentido gramsciano, já que passou a orientar a agenda de discussão e as pautas dos programas econômicos dos países da periferia capitalista”. (Oliveira: 2003d, 111).

Como exemplos da influência desse órgão na política brasileira tem-se a formação do Grupo Misto BNDE/CEPAL, em 1953 cujo relatório, publicado entre 1955 e 1956 serviu de base para a elaboração do Programa de Metas de Juscelino Kubitschek (Almeida, 2006: 163) e as conferências proferidas por Celso Furtado no ano de 1957, como parte integrante do “Curso de Treinamento em Problemas de Desenvolvimento Econômico” promovido pela CEPAL. Essas conferências foram editadas e publicadas pelo ISEB, em 1958, sob o título “Perspectivas da Economia Brasileira”.

O golpe de 1964 é reconhecido pelo próprio autor como um evento que marcou intensamente sua trajetória. Alijado das estruturas estatais, ele se dedica à vida acadêmica e a rever sua produção precedente. Além disso, vários autores indicam que este foi o momento da crise final da ideologia nacionaldesenvolvimentista, a qual teve em Furtado um de seus mais importantesexpoentes teóricos.

A produção teórica de Celso Furtado no pré-1964 está relacionada a sua atuação no aparelho estatal. Poucos autores brasileiros foram tão felizes como ele na articulação entre teoria e prática. Através de sua análise da formação histórica brasileira, da explicação sobre os condicionantes históricos de nosso atraso relativo (comparado às economias desenvolvidas), forneceu as justificativas teóricas para a política econômica implementada pelo Estado brasileiro durante o período, em especial no governo Kubitscheck, do qual teve importante participação.

Do início dos anos 50 até 1964 pode-se destacar dois momentos distintos em sua obra. O primeiro deles vai até 1961 – ano da publicação de Desenvolvimento e subdesenvolvimento – sua maior inquietação girava em torno da elaboração de um projeto de “desenvolvimento” capitalista para o país, ou um projeto de industrialização coordenado e comandado pelo Estado, órgão, segundo a visão furtadiana, politicamente neutro. Aqui, vale a pena destacar, o papel da burocracia de Estado em seu pensamento, que estaria acima dos interesses particulares e, portanto, capaz de formular e implementar políticas voltadas para a realização do “bem comum”,

“Mais do que ninguém, inclusive devido à sua criatividade teórica e capacidade de mobilização no interior das estruturas burocráticas públicas (no Brasil e no exterior), Furtado reforçou a imagem do Estado Brasileiro como a única instância confiável e adequada aos que, articulando conhecimento científico e opção ideológica, pretendiam dirigir o processo de emancipação nacional” (Almeida, 2006: 172).

O início da década de 1960 foi um momento de extrema polarização políticoideológica no Brasil, em que se observou o acirramento das contradições sociais e a ascensão dos movimentos populares como atores importantes na cena política brasileira. Neste contexto, Furtado abandonou sua postura de “técnico” e mergulhou diretamente no debate político-ideológico com o objetivo de defender o projeto de reforma do capitalismo brasileiro, em oposição ao revolucionário, de inspiração marxista-leninista. Nos textos desse período, o autor defende a realização das reformas de base como medidas necessárias à diminuição da miséria existente na sociedade brasileira, uma vez que ela era encarada como o principal fator que possibilitava a expansão das idéias revolucionárias.

A problemática da questão regional, mais especificamente do desenvolvimento do Nordeste e, dentro dela, a da reforma agrária, nos permite identificar claramente esses dois momentos da obra furtadiana. O tema da reforma agrária, assim como das demais reformas distributivas, encontram-se intimamente relacionados à questão da intensificação da luta de classes em finais dos anos 50 e início dos anos 60. Esse é o período em que se percebe a intensificação do movimento das Ligas Camponesas no campo e da Frente do Recife, no meio urbano.

O Desenvolvimento do Nordeste e a Reforma Agrária

A economia nordestina foi um tema privilegiado na obra de Furtado no pré-1964, em especial na segunda metade dos anos 50. Durante esse período ele atuou no aparelho estatal com objetivo de elaborar um plano de desenvolvimento para o Nordeste. Além de trabalhar na criação da SUDENE (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste), Principal agência burocrática responsável pela condução desse plano. As soluções para os problemas nordestinos segundo a óptica furtadiana passavam pela modificação das estruturas produtivas da região, sem se voltar diretamente para a questão da reforma agrária. Essa questão só é abordada de forma explícita pelo autor em seu texto de 1962, quando a reforma agrária se torna um instrumento fundamental para a contenção do movimento revolucionário no campo.

Segundo Furtado, o Nordeste seria o sistema econômico subdesenvolvido mais importante do país, isso porque, dada a sua evolução histórica, galgou manter uma grande reserva de mão-de-obra. Essa população, relegada à subsistência, seria induzida a migrar, o que forçaria a redução dos salários na região industrializada. Essa era para Furtado a explicação para o fato dos salários não aumentarem na mesma medida que os ganhos em produtividade nos centros industriais. O excedente de mão-de-obra seria um dos principais problemas das economias subdesenvolvidas, pois, por um lado, dificultava a organização dos trabalhadores e, por outro, permitia que a economia crescesse sem que houvesse a necessidade da incorporação de novas tecnologias. Se esse problema fosse solucionado, a economia superaria sua condição de subdesenvolvimento.

Para o autor, a industrialização brasileira, extremamente concentrada geograficamente, conforme vinha ocorrendo, ao invés de contribuir para o desenvolvimento desta região, o Nordeste, estimulava a sua permanência no quadro em que se encontrava, o que, dado o processo de rápida industrialização pelo qual passava o Centro-Sul, determinava um crescente aprofundamento das desigualdades regionais, “...na forma como foram conduzidas, no último decênio, as relações econômicas do Nordeste com o Centro-Sul têm sido prejudiciais à região mais pobre de recursos e de menor grau de desenvolvimento” (GTDN, 1959: 31).

É importante frisar que, na análise furtadiana, o Centro-Sul e o Nordeste constituem dois sistemas econômicos diferentes, apesar de associados. A economia brasileira seria formada, segundo essa ótica, por uma estrutura dual. Essa análise dualista foi criticada por Francisco de Oliveira (1972) para quem os setores chamados moderno e tradicional encontravam-se em uma simbiose. O primeiro se desenvolvia apoiando-se no segundo, a fim de maximizar a acumulação. Ao mesmo tempo, o setor exportador geraria as divisas necessárias para que o setor industrial prosseguisse com seu desenvolvimento.

A tese da existência no Brasil de dois sistemas econômicos possibilitou a Furtado concluir que haveria uma reprodução interna do mesmo sistema de dependência observado no plano internacional, entre Estados nacionais, em função da divisão internacional do trabalho. Ocorreria no Brasil “a deterioração dos termos de troca” característica da relação “centro-periferia” no sistema mundial. O Nordeste desempenharia o papel de “periferia” e o Centro-Sul de “centro”. Reproduzir-se-iam internamente as mesmas relações observadas na divisão internacional do trabalho, em que o Centro-Sul industrializado seria favorecido em detrimento do Nordeste agrário.

Ao analisar a relação entre Nordeste e Centro-Sul, Furtado utiliza o repertório analítico da tese cepalina sobre a relação centro-periferia: "Não podem coexistir, no mesmo país, um sistema industrial de base regional e um conjunto de economias primárias dependentes e subordinadas, por uma razão muito simples: as relações econômicas entre uma economia industrial e economias primárias tendem sempre a formas de exploração" (GTDN, 1959: 11).

Para Wilson Cano, tal concepção é válida somente para relações entre estados nacionais – que são “politicamente independentes”, não se aplicando às relações que se estabelecem entre regiões que compõem o mesmo estado nacional.

Apesar disso, o problema central dessa tese era não perceber que o cerne da questão não estaria em implementar os setores industriais modernos, “... mas uma industrialização predominantemente comandada pelo capital estrangeiro ou pelo Estado, de caráter marcadamente oligopolista. Neste contexto, Furtado não se deu conta da inexistência, já naquela época, de uma oportunidade histórica ‘concreta’ para a criação de um ‘Centro Autônomo (Regional) de Expansão manufatureira’” (Cano, 1985: 26).

As propostas contidas na Operação Nordeste não se contrapõem à política desenvolvimentista do governo Kubitscheck e estão intimamente ligadas à idéia de integração nacional. Apesar de o documento do GTDN (Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste) propor como proposta de criação de um “centro autônomo de expansão manufatureira” (GTDN, 1959:12) na região nordestina, medidas presentes no I Plano Diretor da SUDENE, aprovado em 1961, incentivavam o investimento do capital industrial paulista no Nordeste. Em seu artigo 34 consta que: "É facultado às pessoas jurídicas e de capital 100% nacional efetuarem a dedução até 50%, nas declarações do impôsto de renda, de importância destinada ao reinvestimento ou aplicação em indústria considerada pela SUDENE, de interêsse para o desenvolvimento do Nordeste."

Em documentos elaborados pela própria Superintendência, já consta a possibilidade da participação de capitais de outras regiões nos investimentos necessários ao “desenvolvimento do Nordeste”, ficam assim excluídas as possibilidades de um projeto de industrialização autônoma da região. Nesse aspecto, pode-se apontar uma contradição entre o texto que serviu de base para a aprovação da lei que criou a SUDENE e as políticas implementadas por seu primeiro plano diretor. Nas palavras de Francisco de Oliveira "Ironicamente, a prática da política de desenvolvimento regional, que centrou suas potencialidades na expansão oligopolista do Centro-Sul, é radicalmente diferente da abordagem dos ‘desequilíbrios regionais’. [...] É surpreendente, pois, que a retórica dos planos, programas e políticas de desenvolvimento regional siga seu curso, completamente divorciada da prática real da política implementada (Oliveira,1985:25)".

As políticas implementadas pela SUDENE apesar de contribuírem para amenizar o ritmo de concentração industrial (Cano, 1985: 107). A industrialização no Nordeste se deu a partir da expansão do capital monopolista sediado no Centro-Sul e não com base em investimentos de empresários nordestinos.

“Os grandes grupos econômicos do Centro-Sul, gozando dos incentivos fiscais, passaram a implementar unidades produtivas, geralmente no padrão de capital intensivo (poupador de mão-de-obra), que, obviamente, transcendiam as possibilidades internas do Nordeste, seja em termos de capitais, seja em termos de mercado. Quanto à burguesia nordestina, não haverá lugar para ela na nova ordem econômica, calcada no investimento e na realização de capital altamente concentrado. Pouquíssimos grupos econômicos locais conseguiram sobreviver” (Vieira, 2003: 254).

No Segundo Plano Diretor da SUDENE, aprovado em junho de 1963, foi retirado à exigência do capital ser cem por cento nacional para a concessão dos incentivos fiscais nos investimentos industriais no Nordeste. Reforçava-se assim, a tendência de expansão do capital monopolista no Brasil.

É muito comum na literatura que comenta a produção furtadiana atribuir ao autor a defesa da reforma agrária, como elemento necessário ao desenvolvimento econômico brasileiro, já nos textos elaborados por ele durante o governo Kubitschek. Este é um problema grave, pois se corre o risco de deshistoricizar sua produção. Além disso, a produção furtadiana sobre a problemática nordestina, em especial, está intimamente relacionada à ação estatal na região. Tais análises, ao perderem a perspectiva histórica, ficam impossibilitadas de compreender a importância da obra de Furtado no período, assim como de suas implicações políticas.

De fato, o autor paraibano foi, no pós-1964, um dos grandes defensores das reformas distributivas como medidas necessárias ao desenvolvimento endógeno brasileiro. Entretanto, o mesmo não ocorre em relação à reforma agrária, no pré-1964. Para Wilson Cano (2000), Furtado afirmou que a solução para o problema do superexcedente populacional na zona rural nordestina passaria pela reforma agrária e que essa proposta constaria no documento do GTDN, Uma política de desenvolvimento para o nordeste, de 1959. Todavia, o termo “reforma agrária” não aparece em nenhum momento desse texto. O que está presente é a tese da necessidade de mudanças no sentido de se “reorganizar a unidade produtiva da região semi-árida” e não propriamente de se fazer a reforma agrária. Como o próprio Cano reconhece, o objetivo central era instituir relações capitalistas de produção, ou seja, introduzir renda monetária na região com base no assalariamento dos trabalhadores.

Segundo Furtado, a política de desenvolvimento para o Nordeste deveria abarcar diferentes linhas de ação, correspondentes às diferentes características ecológicas de cada sub-região nordestina.

No semi-árido, mais especificamente na região de caatinga, havia-se implementado uma economia extremamente vulnerável à seca. Seria, então, primordial um melhor aproveitamento dos recursos da região e, para isso, era preciso reorganizar sua agricultura, que teria como pressuposto diminuir a densidade populacional, por meio do deslocamento da fronteira agrícola nordestina, principalmente rumo às terras úmidas do Maranhão, as quais são mais férteis e poderiam ser destinadas à produção de alimentos para o restante do Nordeste. Assim, para Furtado, havia a necessidade de criar “frentes de colonização” com base no escoamento do excedente populacional e na criação de uma infraestrutura que permitisse o escoamento da produção. A região semi- árida deveria se especializar na produção de xerófilas e na pecuária, além de diminuir a agricultura de subsistência.(GTDN, 1959: 84).

A reforma agrária, com relação ao problema do desenvolvimento econômico do Nordeste, foi trabalhada por Furtado no texto A Operação Nordeste, que corresponde a uma conferência proferida por ele no ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros). Esse tema só foi abordado depois da exposição principal, no momento do debate com as pessoas que acompanhavam tal evento. Para o conferencista, a reforma agrária seria, nesta região semi-árida da caatinga, contraproducente, pois eliminaria suas bases econômicas. Furtado enfatiza novamente que a solução se trata de tornar o trabalhador rural um proprietário, mas de estimular o assalariamento no interior de relações capitalistas de produção.

“Para implementar nesta área uma economia desenvolvida, de alta produtividade, que possa, portanto, proporcionar salários mais altos, devemos partir de uma unidade de produção agrícola de tamanho médio, ou de dimensões a determinar, de acôrdo com a sub-região. [...] A reforma, na caatinga, não pode ser divisão da terra, e sim reorganização da agricultura, proporcionando ao homem melhor nível de vida” (Furtado, 1959: 57, grifos nossos).

No agreste, segundo Furtado, predominava a agricultura de subsistência, com base na utilização de reduzidas quantidades de terra. Sendo o solo extremamente pobre, a questão não era dividir as terras, mas aglutiná-las, pois “uma unidade produtiva no agreste deve ter em média 20 hectares, o que, no caso, corresponde a uma grande propriedade”. Assim, “A reforma agrária, aí, não se fará pela divisão da terra, ao contrário, pela aglutinação dos pequenos sítios. Se a operação se deve fazer pondo para fora o proprietário, latifundiário ou não, é um problema político – e a opção por uma forma ou por outra não compete ao economista” (Idem: 60).

Pode-se observar que Furtado muda o sentido da reforma agrária, tal como assumido por amplos setores da esquerda na época. Ela não passa necessariamente pela transformação do sitiante em proprietário. As mudanças econômicas necessárias ao desenvolvimento da região poderiam ser feitas mantendo-se boa parte da estrutura fundiária , desde que fosse alterada a forma de organização da produção. Além disso, Furtado se esquiva de qualquer posicionamento com relação à concentração da terra a partir de um argumento tecnicista. Tal proposta não entra necessariamente em contradição com os interesses das oligarquias regionais.

Por último, temos a região da zona da mata, com a predominância do latifúndio açucareiro. Aqui seria necessário utilizar técnicas de produção mais avançadas e difundir o uso da irrigação, de modo a aumentar a produção por hectare e, desta forma, diminuir a extensão do plantio da cana sem prejuízo para o volume da produção. Com essa medida, seria possível liberar terra para a cultura de outros produtos, em especial os destinados ao consumo da população, o que permitiria o aumento na oferta de alimentos e, em conseqüência, a redução nos custos dos mesmos.

Entretanto, a industrialização por si só não resolveria o principal problema na região nordestina, o excedente de mão-de-obra. Seria necessário o “deslocamento da fronteira agrícola e da irrigação das zonas áridas, para aumentar a disponibilidade de terras aráveis por homem ocupado na agricultura” (idem:55). Com relação à reforma agrária, Furtado, novamente, afirmou que não lhe cabia a ele opinar sobre o assunto. O que lhe competia, era determinar qual seria “a forma mais racional de utilização da terra”, cujos meios já foram expostos acima. Furtado foi enfático sobre esse ponto: "O que tenho a dizer, com toda a franqueza, é que se a grande maioria quiser adotar esta ou aquela solução, por exemplo, tomar as terras de uns e dar a outros, não sou eu quem vai se opor a isso, nem o técnico, nem o indigitado latifundiário. O que não posso é acobertar, na qualidade de técnico, uma bandeira política qualquer" (Idem: 62-63, grifos nossos).

A criação da SUDENE, pela lei 3.692 de dezembro de 1959, foi influenciada pela ocorrência de uma grande seca que assolou o Nordeste em 1958 e por estatísticas que apontavam para um aumento nas desigualdades regionais. Entretanto, o fator fundamental foi a intensificação dos movimentos sociais a partir da segunda metade da década de 50 e início da década de 1960 “... a SUDENE surgiu num momento em que se revelaram de modo particularmente aberto e intenso os antagonismos da sociedade do Nordeste”. (Ianni, 1984:210).

“Os movimentos sociais se tornaram fatores preocupantes para o governo, difundiramse tanto no meio rural, com as Ligas Camponesas, quanto no urbano onde se destacou a Frente do Recife, sediada na maior cidade nordestina da época, além do fato do governo Kubitscheck ter perdido para a oposição nas eleições estaduais em Pernambuco e na Bahia em 1958”.

No momento em que camponeses e operários rurais deixaram de acomodarse às soluções de estilo oligárquico [...] os grupos dominantes no Nordeste e o governo federal (incluindo o Executivo e o Legislativo), decidiram agir politicamente, no sentido de controlar ou dominar as tensões sociais crescentes na região. Aliás, a SUDENE não foi se não uma das soluções dadas ao agravamento das tensões políticas no Nordeste (idem: 210-211).

Aos olhos das classes dominantes havia um outro elemento que agravava o temor com relação à intensificação dos movimentos populares. A Revolução Cubana (1956-1959) caracterizou-se como um movimento revolucionário latinoamericano bem sucedido e que poderia ser seguido como exemplo para as forças políticas em ascensão no Nordeste. Por isso, a questão nordestina passou a ser encarada como um problema de segurança nacional, pois

“(...) zonas subdesenvolvidas são zonas potencialmente ocupadas pelo inimigo [regime soviético]. Não pertence ao Brasil o que está dominado pela fome, não se acham efetivamente integradas no organismo nacional as áreas em que as populações vegetam no isolamento ou são dizimadas pela precariedade das condições de existência, oferecendo ao mundo espantoso índice de mortalidade infantil”.(Kubitscheck, 1959).

A pobreza e as precárias condições de vida de grande parte da população nordestina eram encaradas como algo que propiciava a difusão de idéias “comunistas”. Nos discursos de JK, “o combate a miséria é a forma mais eficaz de não permitir a implementação do regime soviético” (Cardoso,1977:109).

A problemática da reforma agrária foi pouco discutida por Furtado nos anos em que ele se ocupava do Plano de Desenvolvimento para o Nordeste. Quando o tema era abordado, em nome de sua condição de economista, aceitava se manifestar sobre a reforma agrária, questão que julgava ser eminentemente política. Tudo se passava como se, para Furtado, sua própria atuação, como técnico e economista inserido nas arenas decisórias do aparelho estatal, não fosse política.

Entretanto, em seus textos da década de 60, essa problemática é explicitamente abordada pelo autor. É verdade que ele continuava tratando a reforma agrária como algo pertencente à esfera da política, isto porque, “antes de 1964, Furtado ainda não elaborara as análises em que a distribuição de renda e de propriedade figurariam como determinantes da dinâmica do crescimento econômico” (Bielschowsky, 2000: 162). A reforma agrária, assim como as reformas distributivas, só se tornaram fundamentais para o desenvolvimento econômico, no pensamento de Furtado no pós-1964, em especial em sua fase “estagnacionista”, quando considerava existir no Brasil uma insuficiência de demanda, causada pela alta taxa de concentração de renda da economia brasileira.

O início dos anos 60 é marcado pelo crescimento das Ligas Camponesas, movimento que lutava por modificações na estrutura agrária brasileira e tinha como uma de suas bandeiras precisamente a reforma agrária. A ascensão desse movimento, aspecto mais importante do acirramento das lutas sociais no campo, somada à então recente Revolução Cubana, alarmava as classes dominantes. Nesse contexto, Furtado “... viu-se constrangido a abandonar a ‘discrição política’,a linguagem ‘objetiva’ de cientista social e técnico do planejamento e mergulhar na luta travada entre os grupos sociais que disputavam o controle do processo de desenvolvimento capitalista do Brasil” (Vieira, 2003: 240).

O que teria propiciado a emergência da consciência de classe entre os camponeses foi o rebaixamento de suas condições de vida imposto pelas classes proprietárias. Segundo Furtado, a condição de vida dos trabalhadores caiu tanto, entre 1960 e 1962, que seu salário mal dava para um litro de farinha de mandioca. Para ele, esse seria o fator determinante da rápida expansão das Ligas Camponesas na Zona da Mata.

Assim, caso fosse mantida a rígida estrutura agrária existente na sociedade brasileira, “todo o movimento reivindicatório que surja nos campos tenderá a assimilar rapidamente técnicas revolucionárias de tipo marxista-leninista”.(Furtado, 1962: 29). Para conter a ameaça de uma sublevação revolucionária, as reformas
de base fazem-se mais do que necessárias

Quando Furtado escreveu Dialética do desenvolvimento (1964) já havia ocorrido à aprovação do Estatuto do Trabalhador Rural (1963) e a avaliação desse episódio está relacionada à análise precedente. A extensão da legislação trabalhista ao campo teria possibilitado que as antigas associações camponesas semiclandestinas se transformassem em sindicatos, o que teria permitido “... à classe camponesa atuar prontamente com extraordinária eficácia [...] levando a aplicação em tempo recorde uma legislação que não somente elevava substancialmente os seus salários reais, mas também modificava pela base relações de trabalho seculares” (Furtado, 1964: 155-156).

A reforma agrária representa nesse momento para Furtado uma forma de barrar o crescente processo revolucionário, que, caso fosse bem sucedido, representaria um retrocesso, dado o grau de liberdade que, para o autor, a sociedade brasileira já havia atingido. A defesa da democracia e a crítica da exclusão política das “massas rurais” presentes em seu pensamento cumpriria o “objetivo de neutralizar o potencial revolucionário no campo brasileiro. (...) Como o próprio Furtado explicitava, sua grande preocupação era, diante das lutas sociais no campo, impedir a eclosão de uma revolução de caráter marxistaleninista” (Almeida, 2006:170). No pré-1964, a defesa da reforma agrária e das demais reformas distributivas assumem, no pensamento de Furtado, um caráter explicitamente anti-revolucionário.

Considerações finais

A abordagem da questão regional no pensamento furtadiano no período anterior ao golpe militar de 1964 pode ser encarada como propostas explícitas de reformar o capitalismo brasileiro. Com esse objetivo em mente, Furtado travou um amplo debate com as perspectivas teóricas que buscava combater. Num primeiro momento, dedica-se a refutar os métodos neoclássicos e as teses marxianas por meio do questionamento da cientificidade dos mesmos. Só a metodologia utilizada por ele teria o status de ciência. As demais se reduziriam a doutrinas, com pouco ou nenhum apego à realidade. Posteriormente, o seu discurso se politiza, visando, por um lado, afirmar o quão danoso era o método revolucionário para transformar a realidade e, por outro, defender a necessidade das reformas – que estavam nos programas do presidente João Goulart e no Plano Trienal – que deveriam ser feitas por meios constitucionais. Além disso, em seu discurso em prol das reformas, procurava persuadir a juventude socialista de que possuíam objetivos comuns. Nesse ponto, a defesa da democracia tem na ordem vigente seu ponto chave.

Neste período, observa-se em seu pensamento uma clara distinção entre ciência e política, que se apresentou de forma explícita quando o autor se encontrava empenhado na defesa da implementação de uma estrutura burocrática específica – a SUDENE – capaz de implementar o Plano de desenvolvimento para o Nordeste. Como foi visto, sua argumentação girava em torno de que esta seria a maneira mais “racional” de resolver os problemas nordestinos e que o fator político presente na estrutura do novo órgão teria a incumbência de criar consenso social necessário a sua implementação. Neste ponto, destaca-se o debate sobre a reforma agrária presente no texto A operação Nordeste, em que Furtado se opõe à divisão de terras em algumas regiões nordestinas, justificando sua perspectiva a partir de sua condição de técnico e economista, e propõe, em seu lugar, “frentes de colonização”. As propostas contidas em tal plano visavam uma melhor inserção do modo de produção capitalista no campo ou, nas palavras do autor, “fornecer maior racionalidade” à estrutura produtiva nordestina, sem que houvesse grandes transformações na estrutura fundiária. A reforma agrária seria neste contexto uma opção política e não algo “tecnicamente” necessário para o desenvolvimento capitalista da região.

Não se está aqui questionando a dimensão científica das análises furtadianas, muito pelo contrário. O que se destaca é que o economista brasileiro, ao separar a ação técnica da política, busca legitimar sua posição com base no argumento de que ela seria a única cientificamente possível, desconsiderado que mesmo as opções técnicas contém em si posições políticas. Ao fazer isso, Furtado tenta persuadir os diversos grupos sociais a aceitarem o projeto por ele defendido, afirmando que esse seria o único que se pautava em métodos científicos de apreensão e de diagnóstico da realidade brasileira.

Posteriormente, em um momento de ascensão dos movimentos sociais, Furtado defendeu a implementação da reforma agrária como medida necessária à contenção do potencial revolucionário desses movimentos. Para ele a questão era: ou se fazia a reforma dentro dos marcos legais do sistema vigente ou, fatalmente, o Brasil entraria em um processo abertamente revolucionário, pois a grande massa de miseráveis seria persuadida pelos movimentos de orientação marxista-leninista a adotar a estratégia revolucionária. Naquele contexto, apesar das acusações de comunista que sofreu no período anterior ao golpe de 1964, Furtado foi um grande defensor do sistema capitalista, que, desde que reformado, poderia, segundo sua visão, propiciar melhorias na qualidade de vida da população brasileira.

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O longo amanhecer, cinebiografia de Celso Furtado



Ver também a página da Biblioteca Celso Furtado.

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