Versão original do texto publicado na edição impressa do jornal Brasil de Fato, n. 516 (17 a 23 de janeiro de 2013).
Registro da manifestação dos posseiros revoltosos, em 1957, no sudoeste do Paraná |
Ricardo Prestes Pazello
Blogue Assessoria Jurídica Popular
Engasgada a metralhadora do coronel João Gualberto, dois tiros acertam-no. Como golpe de misericórdia, um faconaço na testa. Assim se inicia, oficialmente, a Guerra do Contestado.
Era madrugada do dia 22 de outubro de 1912, na região do rio Irani, hoje Santa Catarina. Tinha início a expedição militar dos policiais paranaenses, comandados por João Gualberto. Iniciava-se, também, a guerra popular do Contestado, com a morte do monge José Maria.
Alvorecia o moderno capitalismo brasileiro. A luta pela terra polarizava, por um lado, o capital internacional e seus agentes imperiais junto aos governos nacional e estaduais do Paraná e Santa Catarina e, por outro, o povo.
Não à-toa, a região seria palco, quase 40 anos depois, de um conflito espetacular, onde o povo sairia vitorioso. Em 1957, posseiros de cinco municípios levantam-se em armas e tomam as administrações públicas do sudoeste do Paraná.
A nítida associação do poder estatal com um dos pólos em 1912 e a oscilação que o fez contradizer-se, em 1957, ganha progressivamente novos tons e chega a um clímax nos dias de hoje. 100 anos após a Guerra do Contestado, 55 anos após a Revolta dos Posseiros, a reforma agrária não se realiza e o Superior Tribunal de Justiça (STJ), representante de um dos poderes estatais, decide pela intervenção federal no Paraná devido a ocupações realizadas por sem-terra no campo.
A Guerra do Contestado
Com a Batalha do Irani, em que saíram mortos o coronel da polícia e o líder dos caboclos ocupantes das terras do Bituruna, entre os rios Iguaçu e Uruguai, inicia-se o conflito que duraria pelo menos 4 anos, de 1912 a 1916.
O período ficou conhecido como Guerra do Contestado e algumas particularidades marcaram-no: o messianismo dos caboclos ou a disputa territorial entre os estados do Paraná e Santa Catarina. No entanto, o cerne dessa história não pode ser outro senão a luta popular pela terra em face do desenvolvimento capitalista no sul do Brasil.
O que explica a formação de redutos, verdadeiros vilarejos, que concentravam camponeses e despossuídos, nos sertões sulinos? É certo que o elemento religioso foi muito importante, porém a situação social de invisibilidade e empobrecimento não era menos significativa. Questionando o mito de um Brasil pacífico, os intérpretes de nossa formação nacional ressaltam a existência de contínuas guerras genocidas, étnico-raciais e classistas. O Contestado, assim como Canudos ainda que com muitas diferenças, representa um pouco de todas essas dimensões, com especial destaque para a de classe.
Taquaruçu e Caraguatá, atacados 13 vezes e em algumas delas destruídos, se multiplicam em dezenas de outros redutos, fazendo-se e refazendo-se ao longo dos 4 anos da guerra por receberem os primeiros espoliados da terra, no movimento de mercadorização fundiária. A lei de terras de 1850 passa a ter efeitos nefastos após a abolição da escravatura e não é de surpreender que Canudos e Contestado marquem o início da república brasileira.
20 mil caboclos, em uma área que chegou a ter 20 mil quilômetros quadrados, enfrentaram 80% do exército brasileiro mobilizado para reinstaurar a ordem. Os pelados, como os insurgentes ficaram conhecidos, chegaram a ter de lutar contra 7 mil soldados, os quais eram comandados, no fundo, para proteger a propriedade privada da Brazil Railway Company, empresa ferroviária ligada ao grupo de Percival Farqhuar, ianque detentor da estrada de ferro e da maior serraria que o Brasil conhecera até então – a Southern Brazil Lumber and Colonization Company. 6 bilhões de metros quadrados de terra seriam demarcados nas imediações da estrada de ferro, levando o capitalismo e a morte para o interior do Brasil.
A Revolta dos Posseiros
A maior parte dos ocorridos durante o Contestado se deu no território do atual estado de Santa Catarina. No Paraná, a exceção seria a região fronteiriça de Palmas e de União da Vitória. Contudo, mais de 40 anos depois do encerramento do conflito por meio de disputas judiciais, novo levante seria conhecido, agora do lado paranaense, em região onde mais adiante teria ido o capital que a estrada de ferro incorporava.
No sudoeste do Paraná, até 1919, as terras eram devolutas. Rapidamente, porém, as terras são tituladas em nome de empresas que controlavam a construção da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande. É que, por essa época, houve a proposta de construção do ramal que levaria a Guarapuava, cidade do centro-sul do estado. No entanto, após 1930 o governo Vargas anularia a titulação e a partir daí se iniciaria uma pendência judicial que só terminaria em 1962.
Nesse longo meio tempo, a instalação de empresas privadas para colonizar a região das assim conhecidas glebas Missões e Chopim viria a significar a concretização de um episódio ímpar de nossa história: a vitória dos camponeses em sua luta pela terra contra o grande capital.
A ocupação do sudoeste paranaense foi acentuadamente conturbada. Pelo menos três disputas territoriais temperam essa história. Em primeiro lugar, o conflito entre Brasil e Argentina, mais conhecido como “questão de Palmas”, alçar-se-ia a um nível internacional, uma vez que o árbitro da questão viria a ser o presidente dos Estados Unidos e o advogado brasileiro, o Barão do Rio Branco. No plano nacional, em segundo lugar, a Guerra do Contestado. Por último, a disputa jurídica entre a estrada de ferro e o estado do Paraná. É aqui que têm ensejo as condições de possibilidade para a revolta dos colonos.
No período getulista, o Paraná foi comando por um interventor, o qual anulou várias concessões feitas à estrada de ferro, por não ter consolidado a construção do ramal até o centro-sul. É nesse contexto que é criada a Colônia Agrícola Nacional General Osório (CANGO), para ocupar a região e promover os primeiros sinais de desenvolvimento. Ocorre que a estrada de ferro continuaria a disputa judicial e um novo ator entraria em cena: José Rupp, empresário prestador de serviços de colonização agrícola, acabou sendo contratado pela estrada de ferro mas não remunerado por ela. Ganhou judicialmente uma indenização da estrada de ferro, a qual estava com patrimônio já internalizado pelo governo do Paraná. Assim, negociou o suposto crédito, devido não mais pela estrada mas agora pelo governo federal, com uma companhia colonizadora que possuía estreitas relações com o governador de então, Moisés Lupion. Eis, portanto, que passa a atuar na região a Clevelândia Industrial Territorial Ltda. (CITLA). Lupion, que governara de 1946 a 1950, volta ao comando estadual em 1956 e, a partir de 1957, busca acelerar as atividades da CITLA, para colonizar o sudoeste ao custo da expulsão dos posseiros já estabelecidos na região.
A violência das companhias colonizadoras (junto à CITLA passaram a atuar também a Comercial e a Apucarana) assassinou 14 pessoas e vitimou outras 50, segundo dados oficiais. A situação ficou tão insustentável que a população, tanto urbana quanto rural, se mobilizou e em 9 de outubro uma revolta subleva Pato Branco. Chamada pela rádio local, a população chegou ao milhar e deu início à Revolta dos Posseiros. No dia seguinte, na vizinha Francisco Beltrão, 6 mil homens armados tomam o poder, o mesmo ocorrendo em Santo Antônio do Sudoeste, Dois Vizinhos, Capanema e Verê. Em geral, prefeitos, delegados, juízes e até mesmo padres foram presos e/ou expulsos e uma junta governativa decidiu os rumos da região pelos próximos 5 dias. Os insurgentes fizeram-se valer tanto entre os representantes do governo estadual, acuados pelo medo de uma intervenção federal, quanto do governo federal, que preferiu pacificar a região e ainda imputar a culpa pelo ocorrido à oposição partidária que governava o estado.
O MST e as decisões de intervenção federal do STJ hoje
O legado do Contestado e dos Posseiros do sudoeste se espraiou por todo o Paraná, principalmente sobre os trilhos visíveis ou invisíveis da estrada de ferro. A questão agrária, a partir das pendências deixadas por esta herança, é a continuidade do aço dos trilhos já não tão centrais ao desenvolvimento do capitalismo no Brasil.
Em recente julgamento, o STJ decidiu pela intervenção federal no estado do Paraná. Trata-se de caso de não cumprimento de reintegração de posse pelo executivo estadual contra uma ocupação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), em Quedas do Iguaçu, no centro-sul paranaense. A ministra relatora que profere o voto interventivo, Nancy Andrighi, se pergunta: “será que o conflito agrário, no Estado do Paraná, tem características diversas desse mesmo conflito em todo o resto do país, de modo que se torna impossível equacioná-lo de forma mais equilibrada?” A resposta, sem qualquer dúvida, é não, não há características diversas para o conflito agrário que, espantosamente, ainda assola o país. O que há, isto sim, é um histórico de lutas que não nos permite continuar pisando em cadáveres como se em um campo de golfe estivéssemos.
Seja em Quedas do Iguaçu, na propriedade Agropecuária Três Elos, seja em Pinhão, nas áreas das Indústrias João José Zattar S/A, em Ivaiporã, na Fazenda Corumbataí, ou em Pitanga, nas terras de propriedade da Sonda Empreendimentos e Participações Ltda. – todos requerentes exitosos de intervenção federal – o MST é o legatário da luta heróica dos caboclos do Contestado ou dos posseiros do sudoeste. O projeto do povo nestes dois grandes episódios – mesmo que reconheçamos as dissidências de vaqueanos ou jagunços, populares envidando o lado antipopular da luta – traçou-se no sentido da insígnia dos sem-terra: “terra para quem nela vive e trabalha”.
É por isso que às questões da ministra deve-se responder com ênfase: é a omissão do judiciário em perceber que, para além de seus códigos e dos narizes de seus intérpretes, existe uma luta social decorrente de uma realidade desigual que fez gerar os milhares de mortos no Contestado ou os milhares de revoltosos no sudoeste do Paraná. Assim também com os sem-terra paranaenses.
100 anos da Guerra do Contestado, 55 anos da Revolta dos Posseiros e o judiciário brasileiro (junto aos demais poderes, diga-se de passagem) continua usando uma venda para não realizar a reforma agrária e a justiça social no país.
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