O Centro de Formação Milton Santos-Lorenzo Milani continua discutindo a formação do Brasil. Depois da visão crítica acerca da globalização de Milton Santos, passamos à contribuição histórica de Caio Prado Júnior. Marco na virada crítica da interpretação do Brasil e iniciador criativo da análise marxista no país, Caio Prado Júnior apresenta-se como autor de uma obra inarredável para o conhecimento de nossa realidade brasileira.
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Capa da principal obra de Caio Prado Jr. |
Conclusão do livro "Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil" (2000), de Bernardo Ricúpero.
Se fôssemos fazer um inventário
da obra de Caio Prado Jr., avaliando o que nela permanece atual e o que se
tornou com o tempo datado, é certo que nos depararíamos com muita coisa que
envelheceu. É possível até que, se o focalizássemos com lentes do presente,
produziríamos um retrato de Caio Prado como um nacionalista embolorado. Muito
do que Caio defendeu parece hoje irrealista. Em particular, quase mais ninguém
acredita na possibilidade de uma organização praticamente autárquica do país.
Mas julgá-lo com os critérios
atuais, mais do que anacrônico, é equivocado. Isto em razão de Caio Prado Jr.
ter certamente errado muito, como aliás erra qualquer pensador, mas ter
acertado no mais importante: no uso que fez do método marxista. Assim,
parafraseando Lukács, poderíamos dizer pouco importar que todas as propostas de
Caio Prado fossem equivocadas — o que não é verdade — já que, mais importante
do que suas propostas, foi ter sabido bem utilizar a abordagem do materialismo
histórico para explicar o Brasil.
O que deriva basicamente da
relação de Caio Prado Jr. com o marxismo não ter sido de “veneração
supersticiosa” por textos do passado. Não encarou, portanto, o materialismo
histórico como uma coleção de verdades universais, mas como um método vivo.
Assim, como nota Novais, as citações dos clássicos marxistas, tão comuns entre
nossos autores esquerdistas, não são freqüentes em Caio Prado , mostrando
que ele não sente necessidade de recorrer ao argumento da autoridade, postura
de quem é ainda prisioneiro de uma atitude mental que tem suas raízes nos
tempos da escolástica.
Carlos Nelson Coutinho pode mesmo
ter razão ao dizer que Caio não devia conhecer muito marxismo. Isto não tem,
porém, grande importância. Ou melhor, importa como indicação de que Caio Prado,
com o marxismo possivelmente limitado que conhecia, foi capaz de fazer uma obra
monumental, precisamente por ter sabido reter do marxismo o que nele é mais
importante: a abordagem.
Por outro lado, a interpretação
de Caio Prado Jr. a respeito da história brasileira gozou de tal sucesso, que
se converteu praticamente em lugar-comum sobre o nosso passado, podendo mesmo
ter contribuído para que sua obra não tivesse sido valorizada como deveria.
Dessa forma, muito, se não a melhor parte da análise do historiador paulista,
parece hoje uma unanimidade sem praticamente contestação. Por exemplo, quase
mais ninguém questiona que nunca houve feudalismo no Brasil, que nosso destino
foi plasmado pelo sentido aqui assumido pela colonização etc.
Mas esse sucesso extraordinário
leva a uma situação inusitada: Caio Prado parece a muitos um autor a mais,
dentre os vários que teriam sugerido serem essas as características básicas de
nossa história e não o primeiro a apontar para esses traços fundamentais,
abrindo o caminho para os que se seguiram. Pior ainda, é possível até que a
situação não melhore mesmo que se reconheça que Caio foi pioneiro na
interpretação do Brasil, já que para nós muitas de suas afirmações,
originalmente polêmicas, se afiguram tão óbvias que parecem não custar esforço
nem apresentar mérito especial. A sensação que se tem hoje é como se o
extraordinário não tivesse sido a ruptura quase total de Caio Prado Jr. com as
explicações tradicionais do Brasil, mas sim que essa ruptura tenha demorado
tanto tempo para ocorrer.
Um fato, porém, é inquestionável
quando se fala de Caio Prado: lembra-se dele sobretudo como autor marxista. E o
marxismo em nossos dias é visto como uma doutrina morta, que, em passado já
aparentemente longínquo, cometeu crimes horrendos. Uma coisa, entretanto, é, ou
melhor, foi, a experiência do marxismo histórico, da URSS e do “socialismo
real”, e outra bem diferente, é, ou terá de ser, o marxismo entendido como
método.
Justamente por ser método, o
marxismo não se esgota em sua experiência histórica. É bem verdade que o
marxismo pôde até mesmo ter tido essa experiência histórica — que, diga-se de
passagem, foi manchada de sangue por todos os lados — até porque o fundador do
Estado soviético, Lênin, o entendeu como método. Esteve, assim, preparado para
fazer face às condições russas e ensaiar o segundo “assalto aos céus” da
história da humanidade. Não é menos verdade, entretanto, que esse “assalto aos
céus” redundou no Gulag, com o marxismo tendo se transformado de método para
analisar e transformar a realidade em ideologia justificadora do domínio de um
certo grupo de homens, no caso, a burocracia.
Caio Prado Jr., apesar de ter
sido defensor apaixonado do “socialismo real”, nos indica o caminho para que,
não em realidade qualquer, mas no Brasil, nos sirvamos do
materialismo-histórico com propósitos emancipatórios. Seu valor permanece
justamente por ter entendido o marxismo como abordagem e não um conjunto de
dogmas com validade universal.
Abordagem esta que lhe permitiu
elevar-se do abstrato ao concreto, reconstruindo, nesse ínterim, a totalidade
da experiência brasileira. Assim, para entender o Brasil, partiu de algo
abstrato como foi o sentido da colonização entre nós, sentido que não
é mesmo exclusivo a brasileiros
mas a todos aqueles povos em que a colonização foi de exploração, e foi
reconstruindo nossa experiência, toda ela marcada por esse dado original, até
concluir que, para nos realizarmos, deveríamos superá-la.
Isto é, Caio Prado mostra como, a
partir do sentido da colonização, organiza-se o povoamento, a produção, a
sociedade, a política e a cultura do Brasil. Assinala, entretanto, que a
experiência brasileira é uma totalidade histórica, portanto, um processo dinâmico.
Dessa forma, a partir de um eixo central, dado pelo sentido da colonização, a
formação econômico-social brasileira se modifica, abrindo mesmo caminho para a
superação da situação colonial. Nesse quadro, há um marco principal: a criação,
a
partir de 1808, de uma
organização jurídico-política própria. Essa organização jurídico-política toma
como modelo as instituições liberais do centro capitalista, que pressupõem a
cidadania. Estabelece-se, assim, uma tensão entre a infra-estrutura brasileira,
que continua colonial, e aspectos da superestrutura, que pressionam pela
constituição de uma Nação.
Caio nota, portanto, que o mais
importante na experiência brasileira é a superação da situação colonial e a
constituição de uma situação nacional. Ou seja, o caminho que se inicia pela
formação do Brasil contemporâneo leva naturalmente à revolução brasileira.
Tendo começado como colônia que tinha sua razão de ser na produção de alguns
gêneros de alto valor no mercado internacional, o que implicava uma quase
completa desconsideração por aqueles que produzem esses bens, devemos caminhar
para algo diferente, uma nação integrada. A totalidade brasileira,
conseqüentemente, revela-se e se realiza precisamente no momento de superação
da situação colonial.
Assim, o uso que Caio Prado Jr.
faz do método do materialismo-histórico o torna um continuador e inovador do
marxismo do Brasil e da América Latina. É continuador porque parte da grande
preocupação que orientou a nossa esquerda, a questão nacional, e é inovador
porque, ao pensar esse problema, a partir dos anos 30, sugere uma abordagem
original que só será retomada, por outros, no final da década de 50.
Ou seja, a atenção de Caio Prado
está voltada para o tema em torno do qual a esquerda do Brasil e da América
Latina praticamente se constituiu, o que o faz um importante representante dessa
linha intelectual e política, ao mesmo tempo que pensa esse problema de forma
nova, diferente de praticamente todos nossos esquerdistas. Como eles, também é
influenciado pelo clima de opinião, nacionalista e antiimperialista, que desde
1917 sopra da Rússia, mas diferentemente deles, não se contenta em consumir as
teses da III Internacional sobre os países “coloniais, semi-coloniais e
dependentes”. A partir de uma preocupação comum à esquerda, afasta-se dela,
ironicamente porque é fiel ao espírito que deve animar o marxismo, de ser um
método para a compreensão e transformação da realidade.
Essa maneira de pensar, tão
contrária à tradição intelectual latino-americana, formada a partir da Contra-Reforma,
só terá continuidade anos depois. Quando essa continuidade surge, através da
teoria da dependência e do marxismo uspiano, as condições para sua produção
serão indiscutivelmente mais favoráveis do que quando Caio iniciou sua
reflexão. Já se disporá então de um corpo mais ou menos consolidado de textos
acerca do Brasil e da América Latina, em relação ao qual será possível tomar
posição favorável ou contrária, além de existirem espaços institucionais de
onde realizar a reflexão, sendo-se mesmo pago para isso.
O que fica de Caio Prado Jr.,
portanto, não são tanto suas falhas, mas a realização grandiosa de um homem
solitário que dispôs de tão pouco para explicar o Brasil.
De qualquer forma, é interessante
notar como pode variar a percepção acerca de Caio Prado ao longo do tempo. Por
exemplo, o que possivelmente pareceu por algum tempo como uma subestimação do
significado da industrialização brasileira, e em parte foi, hoje talvez se
entenda como uma compreensão notável do caráter truncado desse processo. Assim,
ironicamente o que há 20 anos — quando o Brasil finalmente se tornava, sob a
égide do II PND um país industrializado — se entendia como desatualizado em sua
obra, em tempos mais recentes pode ser compreendido de maneira oposta.
Ou melhor, o esgotamento do
desenvolvimentismo, com sua estratégia de substituição de importações, e o
aparecimento de políticas liberais que buscam uma inserção subalterna numa
economia mundial que se torna cada vez mais, para usar a expressão da moda,
“globalizada”, dota a análise de Caio de surpreendente atualidade. Precisamente
porque muito daquilo que foi engendrado no Brasil a partir de 1930 e que nos acostumamos
a pensar como consolidado, em particular, nosso parque industrial, não se
encontra hoje em situação muito confortável. Dessa forma, a desconfiança do historiador
paulista em relação ao processo de industrialização não parece inteiramente
injustificada. Pelo contrário, assistimos nos dias que correm a situações das
quais são exemplo, o desaparecimento de empresas símbolos, como a Metal-Leve e
a COFAP e a reorientação pelas transnacionais do suprimento de insumos em
direção ao exterior, que parecem sugerir quão precária é a transformação da
vida brasileira realizada pela industrialização.
As avaliações contrastantes da
obra de Caio Prado Jr., entretanto, talvez sejam mesmo a maior prova de que
nosso autor é um clássico, já que, à maneira dos clássicos, é alguém que,
continua atual, apesar do desaparecimento de boa parte dos contextos que
permitiram a produção de seus textos. Ou seja, mesmo sem URSS, PCB,
nacionalismo, o que aponta ainda é imprescindível para se compreender e
transformar o Brasil.
Principalmente porque o Brasil
que analisou ainda é, em seus traços fundamentais, o mesmo país em que vivemos.
Assim, dentro do desenvolvimento desigual e combinado que caracteriza o capitalismo,
Caio Prado notou que o que marca países como o nosso, que estão entre a
“civilização e a barbárie” e que não são, portanto, nem Oriente nem bem
Ocidente, é esse convívio promíscuo entre moderno e arcaico, que se explica
pela forma como o moderno se utiliza aqui do arcaico.
Forma esta que leva a uma situação assustadora: no Brasil não ocorrem rupturas, não se supera o passado, que se eterniza, tornando nossa história uma “permanente atualidade”. Conseqüentemente, a obra do historiador paulista só poderá se tornar desatualizada quando, mais do que seus contextos, as condições que a produziram se tornarem datadas. Ou seja, quando finalmente se romper com o passado no Brasil, tarefa à qual Caio Prado Jr. dedicou toda a sua vida, talvez não mais se precise ler seus livros, a não ser que se queira ter contato com um testemunho brilhante de uma época já longínqua.
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Vídeos que discutem a obra de Caio Prado Júnior:
Caio Prado do Junior: Formação Social Brasileira e Relações de Classe (com Virgínia Fontes)
Debate sobre o pensamento de Caio Prado Junior (com Bernardo Ricúpero, Lincoln Secco, Rodrigo Ricúpero e Daniel Alfonso)
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Ver também o dossiê sobre Caio Prado Júnior realizado pelo portal marxismo21, intitulado Caio Prado Júnior: teoria e militância política
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