O Centro de Formação Milton Santos-Lorenzo Milani também discutirá a obra de Celso Furtado, importante economista brasileiro, teve grande influência nas políticas econômicas nacionais antes do golpe de 1964. Suas propostas de reforma social dialogaram amplamente com os movimentos sociais, sendo de oportuno destaque a problemática da reforma agrária.
***
Artigo "Estado, movimentos sociais ereforma agrária: as duas fases do pensamento de Celso Furtado no pré-1964", de Julia Gomes e Souza
Estado, movimentos sociais e
reforma agrária: as duas fases do pensamento de Celso Furtado no pré-1964
Julia Gomes e Souza
Introdução
Celso Furtado foi, durante a
década de 50 e até o golpe militar de 1964, um intelectual de destaque no
interior da burocracia estatal brasileira. Escolheu o aparelho de Estado como
local privilegiado de sua atuação, onde adotou uma postura militante, buscando
orientar as políticas estatais de acordo com sua visão de mundo. Para isso,
travou um grande debate com muitos de seus contemporâneos, buscando
deslegitimar as posições desses e demonstrar que a perspectiva por ele adotada
era a única que se pautava por um método realmente “científico” de observação
da realidade.
Mesmo ainda na CEPAL (Comissão
Econômica Para a América Latina), ele se dedicou a elaboração dos diagnósticos
sobre a economia latino-americana, em especial a brasileira e na proposição de
políticas de Estado. A Comissão foi um dos principais órgãos de difusão de
ideologia desenvolvimentista, fornecendo o seu arcabouço teórico. Para José
Luís Fiori (1995), a CEPAL foi a primeira instituição a formular uma resposta
teórica sistemática para o atraso brasileiro, associando-o ao contexto
internacional. Defendeu a industrialização induzida pelo Estado como estratégia
para o progresso. Para os seus membros, essa seria forma de diminuir a
vulnerabilidade dos países periféricos e de obter uma inserção diferenciada na
divisão internacional do trabalho. O maior representante brasileiro do
pensamento cepalino foi Celso Furtado, que segundo Joseph Love (1998:360), foi
“...o cientista brasileiro mais influente de todo o século”. Nesse sentido,
“...a teorização da Cepal, e de Celso Furtado, transformou-se em ideologia no
sentido gramsciano, já que passou a orientar a agenda de discussão e as pautas
dos programas econômicos dos países da periferia capitalista”. (Oliveira:
2003d, 111).
Como exemplos da influência desse
órgão na política brasileira tem-se a formação do Grupo Misto BNDE/CEPAL, em
1953 cujo relatório, publicado entre 1955 e 1956 serviu de base para a
elaboração do Programa de Metas de Juscelino Kubitschek (Almeida, 2006: 163) e
as conferências proferidas por Celso Furtado no ano de 1957, como parte
integrante do “Curso de Treinamento em Problemas de Desenvolvimento Econômico”
promovido pela CEPAL. Essas conferências foram editadas e publicadas pelo ISEB,
em 1958, sob o título “Perspectivas da Economia Brasileira”.
O golpe de 1964 é reconhecido
pelo próprio autor como um evento que marcou intensamente sua trajetória.
Alijado das estruturas estatais, ele se dedica à vida acadêmica e a rever sua
produção precedente. Além disso, vários autores indicam que este foi o momento
da crise final da ideologia nacionaldesenvolvimentista, a qual teve em Furtado
um de seus mais importantesexpoentes teóricos.
A produção teórica de Celso
Furtado no pré-1964 está relacionada a sua atuação no aparelho estatal. Poucos
autores brasileiros foram tão felizes como ele na articulação entre teoria e
prática. Através de sua análise da formação histórica brasileira, da explicação
sobre os condicionantes históricos de nosso atraso relativo (comparado às
economias desenvolvidas), forneceu as justificativas teóricas para a política
econômica implementada pelo Estado brasileiro durante o período, em especial no
governo Kubitscheck, do qual teve importante participação.
Do início dos anos 50 até 1964
pode-se destacar dois momentos distintos em sua obra. O primeiro deles vai até
1961 – ano da publicação de Desenvolvimento e subdesenvolvimento – sua maior
inquietação girava em torno da elaboração de um projeto de “desenvolvimento”
capitalista para o país, ou um projeto de industrialização coordenado e
comandado pelo Estado, órgão, segundo a visão furtadiana, politicamente neutro.
Aqui, vale a pena destacar, o papel da burocracia de Estado em seu pensamento,
que estaria acima dos interesses particulares e, portanto, capaz de formular e
implementar políticas voltadas para a realização do “bem comum”,
“Mais do que ninguém, inclusive
devido à sua criatividade teórica e capacidade de mobilização no interior das
estruturas burocráticas públicas (no Brasil e no exterior), Furtado reforçou a
imagem do Estado Brasileiro como a única instância confiável e adequada aos
que, articulando conhecimento científico e opção ideológica, pretendiam dirigir
o processo de emancipação nacional” (Almeida, 2006: 172).
O início da década de 1960 foi um
momento de extrema polarização políticoideológica no Brasil, em que se observou
o acirramento das contradições sociais e a ascensão dos movimentos populares
como atores importantes na cena política brasileira. Neste contexto, Furtado
abandonou sua postura de “técnico” e mergulhou diretamente no debate
político-ideológico com o objetivo de defender o projeto de reforma do
capitalismo brasileiro, em oposição ao revolucionário, de inspiração
marxista-leninista. Nos textos desse período, o autor defende a realização das
reformas de base como medidas necessárias à diminuição da miséria existente na
sociedade brasileira, uma vez que ela era encarada como o principal fator que
possibilitava a expansão das idéias revolucionárias.
A problemática da questão
regional, mais especificamente do desenvolvimento do Nordeste e, dentro dela, a
da reforma agrária, nos permite identificar claramente esses dois momentos da
obra furtadiana. O tema da reforma agrária, assim como das demais reformas
distributivas, encontram-se intimamente relacionados à questão da
intensificação da luta de classes em finais dos anos 50 e início dos anos 60.
Esse é o período em que se percebe a intensificação do movimento das Ligas
Camponesas no campo e da Frente do Recife, no meio urbano.
O Desenvolvimento do Nordeste e a
Reforma Agrária
A economia nordestina foi um tema
privilegiado na obra de Furtado no pré-1964, em especial na segunda metade dos
anos 50. Durante esse período ele atuou no aparelho estatal com objetivo de
elaborar um plano de desenvolvimento para o Nordeste. Além de trabalhar na
criação da SUDENE (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste), Principal
agência burocrática responsável pela condução desse plano. As soluções para os
problemas nordestinos segundo a óptica furtadiana passavam pela modificação das
estruturas produtivas da região, sem se voltar diretamente para a questão da
reforma agrária. Essa questão só é abordada de forma explícita pelo autor em
seu texto de 1962, quando a reforma agrária se torna um instrumento fundamental
para a contenção do movimento revolucionário no campo.
Segundo Furtado, o Nordeste seria
o sistema econômico subdesenvolvido mais importante do país, isso porque, dada
a sua evolução histórica, galgou manter uma grande reserva de mão-de-obra. Essa
população, relegada à subsistência, seria induzida a migrar, o que forçaria a
redução dos salários na região industrializada. Essa era para Furtado a
explicação para o fato dos salários não aumentarem na mesma medida que os
ganhos em produtividade nos centros industriais. O excedente de mão-de-obra
seria um dos principais problemas das economias subdesenvolvidas, pois, por um
lado, dificultava a organização dos trabalhadores e, por outro, permitia que a
economia crescesse sem que houvesse a necessidade da incorporação de novas
tecnologias. Se esse problema fosse solucionado, a economia superaria sua
condição de subdesenvolvimento.
Para o autor, a industrialização
brasileira, extremamente concentrada geograficamente, conforme vinha ocorrendo,
ao invés de contribuir para o desenvolvimento desta região, o Nordeste,
estimulava a sua permanência no quadro em que se encontrava, o que, dado o
processo de rápida industrialização pelo qual passava o Centro-Sul, determinava
um crescente aprofundamento das desigualdades regionais, “...na forma como
foram conduzidas, no último decênio, as relações econômicas do Nordeste com o
Centro-Sul têm sido prejudiciais à região mais pobre de recursos e de menor
grau de desenvolvimento” (GTDN, 1959: 31).
É importante frisar que, na
análise furtadiana, o Centro-Sul e o Nordeste constituem dois sistemas
econômicos diferentes, apesar de associados. A economia brasileira seria
formada, segundo essa ótica, por uma estrutura dual. Essa análise dualista foi
criticada por Francisco de Oliveira (1972) para quem os setores chamados
moderno e tradicional encontravam-se em uma simbiose. O primeiro se desenvolvia
apoiando-se no segundo, a fim de maximizar a acumulação. Ao mesmo tempo, o
setor exportador geraria as divisas necessárias para que o setor industrial
prosseguisse com seu desenvolvimento.
A tese da existência no Brasil de
dois sistemas econômicos possibilitou a Furtado concluir que haveria uma
reprodução interna do mesmo sistema de dependência observado no plano
internacional, entre Estados nacionais, em função da divisão internacional do
trabalho. Ocorreria no Brasil “a deterioração dos termos de troca”
característica da relação “centro-periferia” no sistema mundial. O Nordeste
desempenharia o papel de “periferia” e o Centro-Sul de “centro”. Reproduzir-se-iam
internamente as mesmas relações observadas na divisão internacional do
trabalho, em que o Centro-Sul industrializado seria favorecido em detrimento do
Nordeste agrário.
Ao analisar a relação entre
Nordeste e Centro-Sul, Furtado utiliza o repertório analítico da tese cepalina
sobre a relação centro-periferia: "Não podem coexistir, no mesmo país, um
sistema industrial de base regional e um conjunto de economias primárias
dependentes e subordinadas, por uma razão muito simples: as relações econômicas
entre uma economia industrial e economias primárias tendem sempre a formas de
exploração" (GTDN, 1959: 11).
Para Wilson Cano, tal concepção é
válida somente para relações entre estados nacionais – que são “politicamente
independentes”, não se aplicando às relações que se estabelecem entre regiões
que compõem o mesmo estado nacional.
Apesar disso, o problema central
dessa tese era não perceber que o cerne da questão não estaria em implementar
os setores industriais modernos, “... mas uma industrialização predominantemente
comandada pelo capital estrangeiro ou pelo Estado, de caráter marcadamente
oligopolista. Neste contexto, Furtado não se deu conta da inexistência, já
naquela época, de uma oportunidade histórica ‘concreta’ para a criação de um ‘Centro
Autônomo (Regional) de Expansão manufatureira’” (Cano, 1985: 26).
As propostas contidas na Operação
Nordeste não se contrapõem à política desenvolvimentista do governo Kubitscheck
e estão intimamente ligadas à idéia de integração nacional. Apesar de o documento
do GTDN (Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste) propor como
proposta de criação de um “centro autônomo de expansão manufatureira” (GTDN,
1959:12) na região nordestina, medidas presentes no I Plano Diretor da SUDENE,
aprovado em 1961, incentivavam o investimento do capital industrial paulista no
Nordeste. Em seu artigo 34 consta que: "É facultado às pessoas jurídicas e
de capital 100% nacional efetuarem a dedução até 50%, nas declarações do
impôsto de renda, de importância destinada ao reinvestimento ou aplicação em
indústria considerada pela SUDENE, de interêsse para o desenvolvimento do
Nordeste."
Em documentos elaborados pela
própria Superintendência, já consta a possibilidade da participação de capitais
de outras regiões nos investimentos necessários ao “desenvolvimento do
Nordeste”, ficam assim excluídas as possibilidades de um projeto de
industrialização autônoma da região. Nesse aspecto, pode-se apontar uma
contradição entre o texto que serviu de base para a aprovação da lei que criou
a SUDENE e as políticas implementadas por seu primeiro plano diretor. Nas
palavras de Francisco de Oliveira "Ironicamente, a prática da política de
desenvolvimento regional, que centrou suas potencialidades na expansão
oligopolista do Centro-Sul, é radicalmente diferente da abordagem dos ‘desequilíbrios
regionais’. [...] É surpreendente, pois, que a retórica dos planos, programas e
políticas de desenvolvimento regional siga seu curso, completamente divorciada
da prática real da política implementada (Oliveira,1985:25)".
As políticas implementadas pela
SUDENE apesar de contribuírem para amenizar o ritmo de concentração industrial
(Cano, 1985: 107). A industrialização no Nordeste se deu a partir da expansão
do capital monopolista sediado no Centro-Sul e não com base em investimentos de
empresários nordestinos.
“Os grandes grupos econômicos do
Centro-Sul, gozando dos incentivos fiscais, passaram a implementar unidades
produtivas, geralmente no padrão de capital intensivo (poupador de
mão-de-obra), que, obviamente, transcendiam as possibilidades internas do
Nordeste, seja em termos de capitais, seja em termos de mercado. Quanto à burguesia
nordestina, não haverá lugar para ela na nova ordem econômica, calcada no investimento
e na realização de capital altamente concentrado. Pouquíssimos grupos econômicos
locais conseguiram sobreviver” (Vieira, 2003: 254).
No Segundo Plano Diretor da
SUDENE, aprovado em junho de 1963, foi retirado à exigência do capital ser cem
por cento nacional para a concessão dos incentivos fiscais nos investimentos
industriais no Nordeste. Reforçava-se assim, a tendência de expansão do capital
monopolista no Brasil.
É muito comum na literatura que
comenta a produção furtadiana atribuir ao autor a defesa da reforma agrária,
como elemento necessário ao desenvolvimento econômico brasileiro, já nos textos
elaborados por ele durante o governo Kubitschek. Este é um problema grave, pois
se corre o risco de deshistoricizar sua produção. Além disso, a produção
furtadiana sobre a problemática nordestina, em especial, está intimamente
relacionada à ação estatal na região. Tais análises, ao perderem a perspectiva
histórica, ficam impossibilitadas de compreender a importância da obra de
Furtado no período, assim como de suas implicações políticas.
De fato, o autor paraibano foi,
no pós-1964, um dos grandes defensores das reformas distributivas como medidas
necessárias ao desenvolvimento endógeno brasileiro. Entretanto, o mesmo não
ocorre em relação à reforma agrária, no pré-1964. Para Wilson Cano (2000),
Furtado afirmou que a solução para o problema do superexcedente populacional na
zona rural nordestina passaria pela reforma agrária e que essa proposta
constaria no documento do GTDN, Uma política de desenvolvimento para o
nordeste, de 1959. Todavia, o termo “reforma agrária” não aparece em nenhum
momento desse texto. O que está presente é a tese da necessidade de mudanças no
sentido de se “reorganizar a unidade produtiva da região semi-árida” e não
propriamente de se fazer a reforma agrária. Como o próprio Cano reconhece, o
objetivo central era instituir relações capitalistas de produção, ou seja,
introduzir renda monetária na região com base no assalariamento dos
trabalhadores.
Segundo Furtado, a política de
desenvolvimento para o Nordeste deveria abarcar diferentes linhas de ação,
correspondentes às diferentes características ecológicas de cada sub-região
nordestina.
No semi-árido, mais
especificamente na região de caatinga, havia-se implementado uma economia
extremamente vulnerável à seca. Seria, então, primordial um melhor
aproveitamento dos recursos da região e, para isso, era preciso reorganizar sua
agricultura, que teria como pressuposto diminuir a densidade populacional, por
meio do deslocamento da fronteira agrícola nordestina, principalmente rumo às
terras úmidas do Maranhão, as quais são mais férteis e poderiam ser destinadas
à produção de alimentos para o restante do Nordeste. Assim, para Furtado, havia
a necessidade de criar “frentes de colonização” com base no escoamento do excedente
populacional e na criação de uma infraestrutura que permitisse o escoamento da
produção. A região semi- árida deveria se especializar na produção de xerófilas
e na pecuária, além de diminuir a agricultura de subsistência.(GTDN, 1959: 84).
A reforma agrária, com relação ao
problema do desenvolvimento econômico do Nordeste, foi trabalhada por Furtado
no texto A Operação Nordeste, que corresponde a uma conferência proferida por
ele no ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros). Esse tema só foi
abordado depois da exposição principal, no momento do debate com as pessoas que
acompanhavam tal evento. Para o conferencista, a reforma agrária seria, nesta
região semi-árida da caatinga, contraproducente, pois eliminaria suas bases
econômicas. Furtado enfatiza novamente que a solução se trata de tornar o
trabalhador rural um proprietário, mas de estimular o assalariamento no
interior de relações capitalistas de produção.
“Para implementar nesta área uma
economia desenvolvida, de alta produtividade, que possa, portanto, proporcionar
salários mais altos, devemos partir de uma unidade de produção agrícola de
tamanho médio, ou de dimensões a determinar, de acôrdo com a sub-região. [...]
A reforma, na caatinga, não pode ser divisão da terra, e sim reorganização da
agricultura, proporcionando ao homem melhor nível de vida” (Furtado, 1959: 57,
grifos nossos).
No agreste, segundo Furtado,
predominava a agricultura de subsistência, com base na utilização de reduzidas
quantidades de terra. Sendo o solo extremamente pobre, a questão não era
dividir as terras, mas aglutiná-las, pois “uma unidade produtiva no agreste
deve ter em média 20
hectares , o que, no caso, corresponde a uma grande
propriedade”. Assim, “A reforma agrária, aí, não se fará pela divisão da terra,
ao contrário, pela aglutinação dos pequenos sítios. Se a operação se deve fazer
pondo para fora o proprietário, latifundiário ou não, é um problema político –
e a opção por uma forma ou por outra não compete ao economista” (Idem: 60).
Pode-se observar que Furtado muda
o sentido da reforma agrária, tal como assumido por amplos setores da esquerda
na época. Ela não passa necessariamente pela transformação do sitiante em
proprietário. As mudanças econômicas necessárias ao desenvolvimento da região
poderiam ser feitas mantendo-se boa parte da estrutura fundiária , desde que
fosse alterada a forma de organização da produção. Além disso, Furtado se
esquiva de qualquer posicionamento com relação à concentração da terra a partir
de um argumento tecnicista. Tal proposta não entra necessariamente em contradição
com os interesses das oligarquias regionais.
Por último, temos a região da
zona da mata, com a predominância do latifúndio açucareiro. Aqui seria
necessário utilizar técnicas de produção mais avançadas e difundir o uso da
irrigação, de modo a aumentar a produção por hectare e, desta forma, diminuir a
extensão do plantio da cana sem prejuízo para o volume da produção. Com essa
medida, seria possível liberar terra para a cultura de outros produtos, em
especial os destinados ao consumo da população, o que permitiria o aumento na
oferta de alimentos e, em conseqüência, a redução nos custos dos mesmos.
Entretanto, a industrialização
por si só não resolveria o principal problema na região nordestina, o excedente
de mão-de-obra. Seria necessário o “deslocamento da fronteira agrícola e da
irrigação das zonas áridas, para aumentar a disponibilidade de terras aráveis
por homem ocupado na agricultura” (idem:55). Com relação à reforma agrária,
Furtado, novamente, afirmou que não lhe cabia a ele opinar sobre o assunto. O
que lhe competia, era determinar qual seria “a forma mais racional de
utilização da terra”, cujos meios já foram expostos acima. Furtado foi enfático
sobre esse ponto: "O que tenho a dizer, com toda a franqueza, é que se a
grande maioria quiser adotar esta ou aquela solução, por exemplo, tomar as
terras de uns e dar a outros, não sou eu quem vai se opor a isso, nem o
técnico, nem o indigitado latifundiário. O que não posso é acobertar, na qualidade
de técnico, uma bandeira política qualquer" (Idem: 62-63, grifos nossos).
A criação da SUDENE, pela lei
3.692 de dezembro de 1959, foi influenciada pela ocorrência de uma grande seca
que assolou o Nordeste em 1958 e por estatísticas que apontavam para um aumento
nas desigualdades regionais. Entretanto, o fator fundamental foi a
intensificação dos movimentos sociais a partir da segunda metade da década de
50 e início da década de 1960 “... a SUDENE surgiu num momento em que se
revelaram de modo particularmente aberto e intenso os antagonismos da sociedade
do Nordeste”. (Ianni, 1984:210).
“Os movimentos sociais se
tornaram fatores preocupantes para o governo, difundiramse tanto no meio rural,
com as Ligas Camponesas, quanto no urbano onde se destacou a Frente do Recife,
sediada na maior cidade nordestina da época, além do fato do governo
Kubitscheck ter perdido para a oposição nas eleições estaduais em Pernambuco e
na Bahia em 1958” .
No momento em que camponeses e
operários rurais deixaram de acomodarse às soluções de estilo oligárquico [...]
os grupos dominantes no Nordeste e o governo federal (incluindo o Executivo e o
Legislativo), decidiram agir politicamente, no sentido de controlar ou dominar
as tensões sociais crescentes na região. Aliás, a SUDENE não foi se não uma das
soluções dadas ao agravamento das tensões políticas no Nordeste (idem:
210-211).
Aos olhos das classes dominantes
havia um outro elemento que agravava o temor com relação à intensificação dos
movimentos populares. A Revolução Cubana (1956-1959) caracterizou-se como um
movimento revolucionário latinoamericano bem sucedido e que poderia ser seguido
como exemplo para as forças políticas em ascensão no Nordeste. Por isso, a
questão nordestina passou a ser encarada como um problema de segurança
nacional, pois
“(...) zonas subdesenvolvidas são
zonas potencialmente ocupadas pelo inimigo [regime soviético]. Não pertence ao
Brasil o que está dominado pela fome, não se acham efetivamente integradas no
organismo nacional as áreas em que as populações vegetam no isolamento ou são
dizimadas pela precariedade das condições de existência, oferecendo ao mundo
espantoso índice de mortalidade infantil”.(Kubitscheck, 1959).
A pobreza e as precárias
condições de vida de grande parte da população nordestina eram encaradas como
algo que propiciava a difusão de idéias “comunistas”. Nos discursos de JK, “o
combate a miséria é a forma mais eficaz de não permitir a implementação do
regime soviético” (Cardoso,1977:109).
A problemática da reforma agrária
foi pouco discutida por Furtado nos anos em que ele se ocupava do Plano de
Desenvolvimento para o Nordeste. Quando o tema era abordado, em nome de sua
condição de economista, aceitava se manifestar sobre a reforma agrária, questão
que julgava ser eminentemente política. Tudo se passava como se, para Furtado,
sua própria atuação, como técnico e economista inserido nas arenas decisórias
do aparelho estatal, não fosse política.
Entretanto, em seus textos da
década de 60, essa problemática é explicitamente abordada pelo autor. É verdade
que ele continuava tratando a reforma agrária como algo pertencente à esfera da
política, isto porque, “antes de 1964, Furtado ainda não elaborara as análises
em que a distribuição de renda e de propriedade figurariam como determinantes
da dinâmica do crescimento econômico” (Bielschowsky, 2000: 162). A reforma
agrária, assim como as reformas distributivas, só se tornaram fundamentais para
o desenvolvimento econômico, no pensamento de Furtado no pós-1964, em especial
em sua fase “estagnacionista”, quando considerava existir no Brasil uma
insuficiência de demanda, causada pela alta taxa de concentração de renda da
economia brasileira.
O início dos anos 60 é marcado
pelo crescimento das Ligas Camponesas, movimento que lutava por modificações na
estrutura agrária brasileira e tinha como uma de suas bandeiras precisamente a
reforma agrária. A ascensão desse movimento, aspecto mais importante do
acirramento das lutas sociais no campo, somada à então recente Revolução
Cubana, alarmava as classes dominantes. Nesse contexto, Furtado “... viu-se
constrangido a abandonar a ‘discrição política’,a linguagem ‘objetiva’ de
cientista social e técnico do planejamento e mergulhar na luta travada entre os
grupos sociais que disputavam o controle do processo de desenvolvimento
capitalista do Brasil” (Vieira, 2003: 240).
O que teria propiciado a
emergência da consciência de classe entre os camponeses foi o rebaixamento de
suas condições de vida imposto pelas classes proprietárias. Segundo Furtado, a
condição de vida dos trabalhadores caiu tanto, entre 1960 e 1962, que seu
salário mal dava para um litro de farinha de mandioca. Para ele, esse seria o
fator determinante da rápida expansão das Ligas Camponesas na Zona da Mata.
Assim, caso fosse mantida a
rígida estrutura agrária existente na sociedade brasileira, “todo o movimento
reivindicatório que surja nos campos tenderá a assimilar rapidamente técnicas
revolucionárias de tipo marxista-leninista”.(Furtado, 1962: 29). Para conter a
ameaça de uma sublevação revolucionária, as reformas
de base fazem-se mais do que
necessárias
Quando Furtado escreveu Dialética
do desenvolvimento (1964) já havia ocorrido à aprovação do Estatuto do
Trabalhador Rural (1963) e a avaliação desse episódio está relacionada à
análise precedente. A extensão da legislação trabalhista ao campo teria
possibilitado que as antigas associações camponesas semiclandestinas se
transformassem em sindicatos, o que teria permitido “... à classe camponesa atuar
prontamente com extraordinária eficácia [...] levando a aplicação em tempo recorde
uma legislação que não somente elevava substancialmente os seus salários reais,
mas também modificava pela base relações de trabalho seculares” (Furtado, 1964:
155-156).
A reforma agrária representa
nesse momento para Furtado uma forma de barrar o crescente processo
revolucionário, que, caso fosse bem sucedido, representaria um retrocesso, dado
o grau de liberdade que, para o autor, a sociedade brasileira já havia
atingido. A defesa da democracia e a crítica da exclusão política das “massas
rurais” presentes em seu pensamento cumpriria o “objetivo de neutralizar o
potencial revolucionário no campo brasileiro. (...) Como o próprio Furtado
explicitava, sua grande preocupação era, diante das lutas sociais no campo,
impedir a eclosão de uma revolução de caráter marxistaleninista” (Almeida,
2006:170). No pré-1964, a
defesa da reforma agrária e das demais reformas distributivas assumem, no
pensamento de Furtado, um caráter explicitamente anti-revolucionário.
Considerações finais
A abordagem da questão regional
no pensamento furtadiano no período anterior ao golpe militar de 1964 pode ser
encarada como propostas explícitas de reformar o capitalismo brasileiro. Com
esse objetivo em mente, Furtado travou um amplo debate com as perspectivas
teóricas que buscava combater. Num primeiro momento, dedica-se a refutar os
métodos neoclássicos e as teses marxianas por meio do questionamento da
cientificidade dos mesmos. Só a metodologia utilizada por ele teria o status de
ciência. As demais se reduziriam a doutrinas, com pouco ou nenhum apego à
realidade. Posteriormente, o seu discurso se politiza, visando, por um lado,
afirmar o quão danoso era o método revolucionário para transformar a realidade
e, por outro, defender a necessidade das reformas – que estavam nos programas
do presidente João Goulart e no Plano Trienal – que deveriam ser feitas por
meios constitucionais. Além disso, em seu discurso em prol das reformas,
procurava persuadir a juventude socialista de que possuíam objetivos comuns.
Nesse ponto, a defesa da democracia tem na ordem vigente seu ponto chave.
Neste período, observa-se em seu
pensamento uma clara distinção entre ciência e política, que se apresentou de
forma explícita quando o autor se encontrava empenhado na defesa da
implementação de uma estrutura burocrática específica – a SUDENE – capaz de
implementar o Plano de desenvolvimento para o Nordeste. Como foi visto, sua
argumentação girava em torno de que esta seria a maneira mais “racional” de
resolver os problemas nordestinos e que o fator político presente na estrutura
do novo órgão teria a incumbência de criar consenso social necessário a sua
implementação. Neste ponto, destaca-se o debate sobre a reforma agrária
presente no texto A operação Nordeste, em que Furtado se opõe à divisão de
terras em algumas regiões nordestinas, justificando sua perspectiva a partir de
sua condição de técnico e economista, e propõe, em seu lugar, “frentes de
colonização”. As propostas contidas em tal plano visavam uma melhor inserção do
modo de produção capitalista no campo ou, nas palavras do autor, “fornecer maior
racionalidade” à estrutura produtiva nordestina, sem que houvesse grandes transformações
na estrutura fundiária. A reforma agrária seria neste contexto uma opção
política e não algo “tecnicamente” necessário para o desenvolvimento capitalista
da região.
Não se está aqui questionando a
dimensão científica das análises furtadianas, muito pelo contrário. O que se
destaca é que o economista brasileiro, ao separar a ação técnica da política,
busca legitimar sua posição com base no argumento de que ela seria a única
cientificamente possível, desconsiderado que mesmo as opções técnicas contém em
si posições políticas. Ao fazer isso, Furtado tenta persuadir os diversos
grupos sociais a aceitarem o projeto por ele defendido, afirmando que esse
seria o único que se pautava em métodos científicos de apreensão e de
diagnóstico da realidade brasileira.
Posteriormente, em um momento de
ascensão dos movimentos sociais, Furtado defendeu a implementação da reforma
agrária como medida necessária à contenção do potencial revolucionário desses
movimentos. Para ele a questão era: ou se fazia a reforma dentro dos marcos
legais do sistema vigente ou, fatalmente, o Brasil entraria em um processo
abertamente revolucionário, pois a grande massa de miseráveis seria persuadida
pelos movimentos de orientação marxista-leninista a adotar a estratégia
revolucionária. Naquele contexto, apesar das acusações de comunista que sofreu
no período anterior ao golpe de 1964, Furtado foi um grande defensor do sistema
capitalista, que, desde que reformado, poderia, segundo sua visão, propiciar
melhorias na qualidade de vida da população brasileira.
Bibliografia
ALMEIDA, L.F.R. (2006). Uma
ilusão de desenvolvimento: nacionalismo e dominação burguesa nos anos JK.
Florianópolis: UFSC.
BIELSCHOWSKY, R. (2000).
Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimentismo. 4a
ed. Rio de Janeiro: Contraponto.
CANO, W. (1985). Crise Regional e
concentração industrial no Brasil: 1930-1970. São Paulo: Global; Campinas:
UNICAMP.
______________. (2000) “Celso
Furtado e a questão regional no Brasil”. In: TAVARES, M. C. (org.). Celso
Furtado e o Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo.
CARDOSO, M.L. (1977). Ideologia
do desenvolvimento Brasil: JK-JQ. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
FIORI, J.L. (1995). Em busca do
dissenso perdido. Rio de Janeiro: Editora Insight.
FURTADO, C. (1958). Perspectivas
da economia brasileira. Rio de Janeiro: ISEB
______________. (1959). A
operação Nordeste. Rio de Janeiro: ISEB.
______________. (1961).
Desenvolvimento e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura.
______________. (1962). A
pré-revolução brasileira. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura.
______________. (1964). Dialética
do desenvolvimento. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura.
______________. (1997). Obra
autobiográfica de Celso Furtado. 3v. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
GOMES E SOUZA, J. (2004). Teoria voltada para
ação: aspectos do pensamento de Celso Furtado no pré-1964. Dissertação de
mestrado, Ciências Sociais, PUC-SP.
GTDN (1959). Uma política de
desenvolvimento para o Nordeste. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional.
IANNI, O. (1984). “As Ligas
Camponesas e a criação da SUDENE”. In: Origens agrárias do Estado brasileiro.
São Paulo: Brasiliense.
KUBITSCHECK, J. (1959). Discurso.
In: http://www.adene.gov.br/gti/ leiSudene.html#discurso
OLIVEIRA, F.(1972). “A economia
brasileira: crítica a razão dualista”. In: Seleções CEBRAP. São Paulo, julho.
______________. (1985). Elegia
para uma Re(li)gião. 2a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
______________. (2003). A
navegação virtuosa, ensaios sobre Celso Furtado. São Paulo: Boitempo. 2003.
SOARES,J.A. RJ: (1982). A Frente
do Recife e o governo do Arraes: nacionalismo em crise 1955-1964. Rio de
Janeiro, Paz e Terra.
VIEIRA, Rosa Maria (2003). Celso
Furtado: reforma, política e ideologia (1950-1964). Tese de Doutorado,
História, PUC-SP.
***
O longo amanhecer, cinebiografia de Celso Furtado
Ver também a página da Biblioteca Celso Furtado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário