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quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Ponte entre campo e cidade


por Pedro Carrano, jornalista do Brasil de Fato

Ilustração de Poty Lazzarotto (1995)

O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), instituído desde 2003, no contexto da criação do Programa Bolsa Família e do Projeto Fome Zero, disponibiliza a comercialização de produtos da agricultura familiar, a partir da aquisição por parte do governo, sem licitação, a preços compatíveis com os mercados regionais. Na outra ponta, o PAA fornece alimento a comunidades carentes e que não teriam acesso à alimentação oriunda da agricultura familiar, parte dela agroecológica e orgânica, formando também estoques públicos de alimentos. 

A partir disso, no entanto, o programa abre a reflexão sobre como ampliar os espaços de incentivo ao pequeno produtor no campo. E, nas comunidades urbanas, abre o debate sobre como avançar para um projeto de organização popular, sem se limitar apenas ao atual caráter assistencialista. 

Um grupo gestor, coordenado pelo Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e composto por mais cinco Ministérios, define as diretrizes do programa. Implementado no início do governo Lula, há quase dez anos atrás, a bandeira era, nas palavras do ex-presidente, que todos comessem três refeições ao dia. Atualmente, o programa apresenta modalidades de participação do agricultor familiar. De acordo com Jean Carlo Pereira, do setor de produção do MST no Paraná, os módulos são: compra direta da agricultura familiar para formar estoque (no valor mensal de R$ 4500); compra direta da agricultura familiar (no valor de R$ 8 mil); além da compra com doação simultânea – este tópico no qual os movimentos sociais do campo e da cidade se inserem. Em Curitiba, por exemplo, de acordo com Pereira, 130 agricultores do assentamento Contestado, na cidade da Lapa (PR), fornecem hortaliças e frutas para mais de 30 entidades sociais na capital. No mesmo sentido, cerca de 1200 famílias da Cooperativa Coana, cooperativa de agricultores assentados localizada no município de Querência do Norte (PR), fornece laticínios para essas comunidades.  

Pereira explica que a organização é importante para a entrada no Programa, cujos recursos podem ser acessados via municípios ou diretamente com a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). “Nós dos movimentos sociais temos nos organizado com a compra via Conab, em cooperativa ou associação. É preciso fazer um cronograma, dizendo para quem se busca entregar o alimento e quantas pessoas serão beneficiadas”, explica. 


Redução da dependência 

"Bois", de Poty Lazzarotto (1958)
Parte dos alimentos é adquirida pelo governo diretamente dos agricultores familiares, assentados da reforma agrária, comunidades indígenas, povos e comunidades tradicionais (veja quadro abaixo), para a formação de estoques estratégicos, o que potencializa a construção social de outros mercados e cadeias curtas – analisa a pesquisadora Cristiane Coradin, mestranda da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).  

“Nesse sentido, o PAA atua positivamente na redução da dependência dos agricultores de relações mercantis opressoras, como atravessadores e integrações com o agronegócio e pluriatividades (semi-assalariamento e assalariamento rural)”.

De acordo com a pesquisadora, a ideia inicial do Programa Fome Zero era aplicar políticas emergencias junto com políticas estuturantes de geração de emprego e renda. “O PAA surgiu daí, como política estuturante, na agricultura, e emergencial, na alimentação”, analisa. No entanto, ainda é necessário avançar no segundo tópico, no que se refere ao projeto e sua relação no interior das comunidades urbanas (veja abaixo). 

Uma avaliação existente é de que o PAA ainda se configura como um complemento de renda e não a principal renda do assentado. “O PAA é um dos canais de escoamento da produção hoje. O governo tem que abrir outros”, diz Ademir de Jesus Riep, do setor de produção do MST do Paraná. Ele elenca a necessidade de fortalecimento da Conab e da própria comercialização, junto ao fomento à agroindústria. O atendimento do programa à agricultura familiar ainda é considerado modesto, para apenas 4,6% dos estabelecimentos familiares no Brasil, de acordo com a pesquisadora Cátia Grisa, da Universidade Federal do Paraná (UFPR). 

Distribuição para escolas 

Um programa com características diferentes do PAA, mas inserido no mesmo contexto de incentivo à agricultura familiar, é o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que garante o abastecimento de produtos da agricultura familiar nas escolas, presídios, etc.  

Informações do jornal Valor Econômico apontam que, nas décadas de 1970 e 1980, grandes empresas nacionais se formaram para oferecer a merenda às escolas e acabaram por dominar o mercado. A compra era centralizada em Brasília e depois distribuída para todo o país. O desperdício era grande, de acordo com informações do jornal. 

O PAA fornece alimentos para um público que nunca teria acesso a eles. Já no PNAE há uma competição com empresas em um mercado até então monopolizado, avalia Jean Carlo Pereira, do MST-PR. “O PNAE tem competição com empresas da alimentação. A agricultura familiar entra para a disputa (…) Até então, o Estado consumia alimentos e servia às grandes empresas”, diz. 

Na avaliação de Pereira, os valores que ficam com o produtor familiar hoje são reduzidos, não passando de um recebimento de atuais R$ 4500, o que coloca em pauta a demanda para que os programas se consolidem enquanto política e avancem nos espaços de comercialização, de acordo com ele. “O PAA mostra que com um valor tão pequeno, ele consegue  produzir e mudar a vida do produtor. Não precisa de muito recurso, mas precisa de política para isso. Para fortalecer, temos que avançar para o mercado comum, como uma articulação que respeite e fortaleça os agricultores”, afirma. 

Contribuições para os agricultores assentados 

Produtos orgânicos e agroecológicos certificados recebem 30 por cento do pagamento dentro do programa. De acordo com  produtores, este mecanismo tem facilitado a transição para uma matriz agroecológica. “Lotes que antes a gente via só produzindo o leite para comercializar, hoje você vê uma produção diversificada, em uma escala que já tomou uma forma mais comercial, não só para sustentação da família”, comenta Allan Denizzard, da Cooperativa de Comercialização e Industrialização Camponesa (Coopercam), de São Miguel do Iguaçu. 

Entretanto, pesquisadores avaliam que o programa poderia ser um ponto de partida para conquistas maiores, dando maior vazão, por exemplo, à produção de comunidades como as quilombolas, cujo acesso ao programa ainda é pequeno (veja quadro abaixo). Outro limitante também apontado é o numero ainda pequeno de recursos destinados por agricultor por ano e o número de projetos e de agricultores que tem se inserido. 

A pesquisadora Cátia Grisa, da UFPR, enfatiza a necessidade de controle social a partir das ações dos movimentos sociais, de maneira que o programa, instituído como lei em 2003 e atualizado em 2011, mantenha-se como política de Estado e não de governo. “A continuidade do PAA depende fundamentalmente dos resultados do Programa e da capacidade de mobilização dos movimentos sociais visando seu monitoramento, aperfeiçoamento, continuidade e ampliação. O que se observa até o momento é que se trata de um programa com ampla aceitação e reconhecimento nacional e internacional, tanto no âmbito político, quanto acadêmico”, define. 

No entanto, o programa deve ser acompanhado de medidas de mudanças estruturais na propriedade da terra no campo. “Além do que uma política só não basta, ela tem que ser acompanhada de outras estratégias que vislumbrem a construção de outro modelo de agricultura, como a Reforma Agrária, a titulação de terras de povos tradicionais, assistência técnica qualificada, incentivando a agroecologia e produção cooperada. Esses são pontos do projeto popular para a agricultura”, afirma Cristiane Coradin, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).  

Juventude e possível renda 

Até 2003, cerca de 70 por cento da juventude do Vale Ribeira, no Paraná, abandonava o campo com a expectativa de trabalhar em outras regiões. De acordo com André Stival, presidente da Coopafi de Cerro Azul (PR), esse número baixou para 50% a partir de programas sociais como PAA e Pnae, que garantem a comercialização dos produtos de agricultores familiares. 

São cerca de 2600 famílias produzindo na região do Vale do Ribeira. “Cerca de 200 jovens que participam do programa. Jovens agricultores que têm acesso ao PAA, que seriam desistimulados se não houvesse o programa”, afirma. Stival defende que os recursos oriundos do MDS deveriam ser direcionados à juventude.  “Poderíamos ter um recurso para um 'PAA jovem', o que fortaleceria mais”, comenta. 

A avaliação de José  Antônio da Silva, agricultor de Bocaiúva do Sul, integrante da Aopa, o programa contempla indiretamente mulheres e jovens.  Para ele, há um controle maior de estruturas e recursos que poderiam estar abandonadas. “É toda uma questão de renda, fixação no campo e fortalecimento de estruturas  do que antes eram elefantes brancos, caminhões e cozinhas que o governo bancou, que antes estavam em pátio de prefeitura, hoje são obrigados a estar a serviço da agricultura familiar”, afirma. 

Dados: 

 A participação dos produtores que fornecem ao Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) é a seguinte: 
89,73% agricultores familiares; 
7,68% assentados, 
1,10% pescadores,
0,85% extrativistas; 
0,32% quilombolas;
0,16% indigenas
0,15% sem-terras. 

R$ 775 milhões. 
Valor aplicado pelo PAA em 2011

204 mil famílias 
de agricultores familiares beneficiadas, o que representa 4,6% dos estabelecimentos familiares do Brasil. 

FONTE: (2009, Grisa)

Para além do assistencialismo nas grandes cidades 

Necessidade de formação e organização são necessárias para que programas oriundos do Fome Zero não sejam apenas assistencialistas de Curitiba (PR), “Lá em casa nós somos em quatro pessoas. Se eu não tiver essa ajuda aqui a gente passa necessidade. Estou desde o começo (do programa), é uma ajuda boa, não precisa nem gastar no mercado”, relata Elizabeth Aparecida dos Santos, moradora do Bolsão Sabará, na Cidade Industrial de Curitiba (CIC), região que concentra cerca de 20 mil moradores. Uma das associações de bairro têm acesso ao Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), em parceria com os movimentos sociais, além de receber alimentos diretamente da Central de Abastecimento do Paraná (Ceasa). 

Ilustração de Poty Lazzarotto,
no livro "Sagarana" de G. Rosa (1946)
Separada e responsável pela renda da família, Elizabeth relata que, junto com o programa Bolsa Família, a distribuição de alimentos acaba sendo sua principal fonte de renda para a semana. Já para Olga Ferreira da Silva, secretária da associação de moradores da Vila Esperança e Nova Conquista, associação que organiza o recebimento das doações, a entrega de alimentos possibilita diversificar a alimentação da família. “É uma economia que eu faço na semana, se estivesse comprando ia ter meses que eu não ia ter como dar uma fruta, uma verdura para meus filhos”, relata. 

Na capital do Paraná e na região metropolitana, diferentes entidades recebem produtos da agricultura familiar, numa estimativa de cerca de 10 mil pessoas assistidas pelo programa governamental. São diferentes vínculos e entidades organizando a doação, como no caso específico das 30 entidades urbanas que se organizaram para receber os produtos da Cooperativa Terra Livre, do MST. 

Na análise de Antonio Bez, do Centro de Formação Urbano Rural Irmã Araújo, que organiza a distribuição para as entidades urbanas, o perfil das comunidades contempladas pelo programa, em muitos casos, não alcança a renda de um salário mínimo, o que faz do programa o eixo principal de renda da família. 

Bez avalia que, mesmo com a distribuição, há dificuldade de acesso das pessoas ao alimento, devido à dificuldade de locomoção. “Às vezes sequer eles têm vale-transporte”, afirma, citando outros problemas estruturais enfrentados, na questão da Saúde e na opressão sofrida pelas mulheres – principais envolvidas no programa – o que limita sua participação nas atividades de capacitação. 

O diferencial para o PAA não ser apenas um programa de caráter assistencialista, de acordo com Bez, está na questão da formação, o que remete ao contexto inicial do Programa Fome Zero. “A questão é resgatar o que era a origem do Programa Talher, idealizado pelo Frei Betto, e fazer formação e rodas de conversas”, comenta. 

A pesquisadora Cátia Grisa avalia que o programa tem impacto importante e pode ser ampliado no contexto do programa Brasil Sem Miséria. “Há expectativas de expansão do Programa com o Plano Brasil Sem Miséria, intensificando a participação da população em situação de extrema pobreza”, afirma. 

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